Dia desses ouvi numa conversa entre amigos a respeito de uma
filosofia xamânica sobre o sofrimento. Dizem, então, os tais sábios
que quando perdemos alguém importante em nossas vidas – seja pelo
falecimento ou pelo simples afastamento inevitável – perdemos um
pedaço da nossa alma. É como se, às vezes, fosse tão impossível
superar certas perdas, dada a ligação que temos com as pessoas que
um dia amamos intensamente, que quando elas se vão de vez, um pedaço
de nós vai junto, para nunca mais voltar.
Fiquei matutando esse pensamento durante um tempo. Fiz algumas
conexões, como, por exemplo, com a ideia de saudade. Saudade é uma
palavra que, até onde me consta, só existe na língua portuguesa.
Como diz um amigo meu, é um sentimento essencialmente lusitano, já
que é uma palavra de conotação positiva (“fulano, estou com
saudades!”) para expressar um sentimento negativo, de perda. Isso
faz dela a palavra de que mais gosto, ainda que odeie o que ela me faz sentir.
Mas a verdade é que não me conformei com a ideia de perda
constante. Não me é natural, mas estava sendo otimista! “Não
pode ser que as pessoas nunca superem perdas, e que isso seja
inegociável com o acaso”.
E, na verdade, acredito não ser tão assim mesmo. Por um lado, a
filosofia dos antigos tem um sentido, na medida em que há certas
perdas que serão lembradas com um saudosismo e até mesmo uma
tristeza extras por toda a vida. Por outro, de fato, nós perdemos,
sofremos, nos angustiamos não só por pessoas, mas por crises
existenciais fortes mas, no final das contas, por mais que tenhamos
cicatrizes pelo resto da vida, é possível viver de novo. E isso
apenas por uma razão: o impulso da vida.
Pense numa pessoa que, numa praia deserta, vai um pouco adiante do
que deveria no seu banho de mar e se vê numa situação de iminente
afogamento. O desespero toma conta dela, as braçadas são fortes e
constantes, a respiração é cada vez mais difícil, mas depois de
muito esforço, chega à praia (com cãibras e dores musculares
insuportáveis). Viva.
O que é o desespero? Um sentimento ruim? Pelo contrário! Nesse
caso, seria a vontade ensandecida de viver quando a vida propõe o
contrário. O desespero é uma reação natural da vontade de viver.
Uma pessoa na situação descrita pode nuca ter encontrado um momento
de conforto durante seu auto-salvamento. Pode nunca ter voltado à
tranquilidade do banho, mas sobreviveu.
Nossa alma pode ser constantemente inquieta pela perda de pessoas que
amamos, e isso pode incomodar até o resto de nossas vidas. Nesse
sentido, há uma certa razão nos xamãs. Mas é certo também que há
vezes que, se não superamos uma perda racionalmente, é porque
precisamos passar por cima dela, apenas pelo impulso de continuar
vivendo. A falta estará sempre lá. Se superamos, vivemos. Mas, se
não superamos, vivemos. E o fato de viver "apesar dos pesares", e de achar contentamento em outros relacionamentos, e sentido na vida, já é a superação em si mesma.
Se perder uma parte da alma é possível, como é possível que a
história do afogamento tenha um final mais trágico, o impulso da
vida faz com que esse final não seja inevitável. E viver é
exatamente ter a felicidade de saber que, mesmo nas angústias,
sofrer eternamente não é inevitável, ainda que, às vezes, o
contrário seja extremamente difícil.